Escritores Africanos

 
http://kontestu.blogspot.com.br/2012/06/mia-couto.html
Em comemoração ao mês da consciência negra estarei postando alguns textos de escritores africanos e afro-brasileiros a partir de hoje.
O primeiro da lista é o escritor moçambicano, Mia Couto.
Carta (digo dos que se ditam: a minha defesa são os
vossos punhais)
Quando me disseram «não se vem à vida para
sonhar» passei a odiar-vos. Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao
meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas
raízes mais profundas, obrigar-me à cerimônia das palavras mortas. Preferi
reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me
povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das
pequenas coisas: esta água vem de onde, quem teceu este linho, que mãos fizeram
este pão?

Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu
olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas
vozes que me habitavam silenciosamente. Entre mar e terra eu preferia ser
espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.

O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que
golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Eram
terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que
ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me
deixar tombar. Tecido que escapava da mais bela das lavadeiras eu ia pelo rio,
a corrente insuflando-me e eu deixando-me arrastar com fingida contrariedade.

Outubro 1981

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