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Conversa entre Animais
Eles estão presos numa caverna
E a única saída é o diálogo
Do Livro: Flores, Espinhos e Vendavais
Como há muito tempo não acontecia, um grupo de animais se reuniu para um bate-papo vespertino. O encontro foi casual, o local era uma velha gruta à margem de um antigo riacho que há muitos anos não corria água e, por coincidência, nesse dia, depois de uma forte enxurrada, transbordou, pegando todo mundo de surpresa e, pior, desprevenidos. Sem terem como atravessarem o riacho aos poucos foram se aglomerando às suas margens, na velha gruta, um bando de animais, entre eles o humano.
Tudo ia bem até que o gambá, morrendo de frio, soltou um peido de arrasar; para não ficar atrás, o tatu-peba soltou um que era pura carniça. O gorila, sentindo-se provocado, tratou logo de soltar seu famoso arroto enterra defunto; o urubu que sobrevoava aquela área, no momento da chuva, buscou abrigo numa velha árvore muito utilizada por seus pais, que herdaram o costume dos seus avôs e, assim, sucessivamente. Lá repousava, como fizera inúmeras vezes. Estava faminto e já passava do meio-dia, quando foi surpreendido por uma singela e apetitosa fragrância que emanava daquele local, e tratou logo de correr atrás de sua presa. Porém assim que pousou na gruta levou um tremendo susto ao encontrar um bando de animais vivos e sem entender nada foi logo perguntando onde estava o defunto. O que ouviu como resposta foi uma algazarra.
A pequena caverna estava inundada por uma imensa nuvem verde de gás carbônico, sulfúrico, ou qualquer outro produto tóxico que pudesse emanar de um organismo vivo, mas com sérios problemas de digestão. O odor era tão forte que embriagava o olfato de todos e a cada momento aparecia um novo. Quando isso ocorria em meio à galhofa procuravam adivinhar o autor da obra. Para uns, o ambiente era horrível, mas para a maioria era um espetáculo dos deuses; o urubu, mesmo morrendo de fome gostou tanto do ambiente que ficou.
Devido à imensa tempestade, todos gostando ou não, permaneciam ali. Como não podia deixar de ser, o mico-leão tratou logo de melhorar ainda mais o clima com suas palhaçadas, motivo pelo qual foi duramente criticado pelo humano que, já não agüentando mais tanta falta de educação e tanta falta de higiene, falou bravamente para o pobre macaco:
― Dá para você parar? Não acha que já encheu o saco demais?
As palavras do humano quebraram todo o clima de harmonia e de alegria que existia naquele recinto. Durante alguns minutos, o silêncio reinou absoluto até que, não achando que já havia falado o bastante, o humano voltou a soltar suas farpas, agora não somente contra o pobre macaco, que ficara estarrecido com a agressão que acabara de sofrer, mas contra todos os outros ali presentes, e com seu ar de superioridade exclamou:
― Essa é para todos vocês, seus bandos de imundos! Sebosos! Não veem que num local como este não se deve liberar gases? Não ensinaram para vocês que em ambiente fechado não é correto peidar? Já não basta a sujeira do corpo de vocês?! Parece que aqui ninguém sabe o que é tomar banho e nem sabe respeitar o espaço dos outros, por isso lhes peço, por favor, calem a boca e, ou o bico, e apertem bem as pregas do cu, pelo menos enquanto eu permanecer aqui; depois que eu sair quero mais é que vocês se explodam!
Mais uma vez o silêncio voltou a imperar até que, achando a arrogância do humano demais, o mico-leão-dourado resolveu questioná-lo dizendo:
― Como ousa falar de respeito ao espaço dos outros depois de ter destruído toda minha família? Sabe como era minha vida antes da interferência de sua espécie em nosso meio? Eu era muito feliz, vivia cercado de amigos e namoradas, tinha pai, mãe, irmãos, tia, tios e avós… Hoje não tenho nada, vivo numa solidão sem fim… Momentos como este que se encarregou de destruir, pra mim são muito raros… Sou uma sombra a vagar por estas poucas árvores que, por enquanto, seu bando não destruiu… Você não tem idéia do que acabou de fazer… Não tem ideia…
― Com os olhos cheios de lágrimas o mico-leão se recolheu a um canto com profunda melancolia, pois o efeito das palavras do humano acabava de transformar em angústia um momento de rara alegria em sua vida.
Solidária com a dor do mico-leão, a preguiça vagarosamente teceu o seu comentário:
― Sei que seu grupo fala por aí que sou a pior coisa desse mundo, mas fique sabendo que nunca saí do meu lugar para destruir sua comida; nunca matei ninguém de sua família, nem… O homem a interrompeu com desdém:
― Você, no meu mundo, só conseguiria fazer isso ou alguma outra coisa parecida se deixasse de ser tão lerda e tão sem vontade de obter as coisas. Você dorme exacerbadamente, enquanto o mundo gira a mil por hora, dormir e comer são as únicas atividades que tem vontade de fazer, nós não somos os culpados pelo seu semblante de derrota, muito menos pela sua melancolia, nós trabalhamos muito pelo progresso, enquanto come lentamente e dorme mais que um elefante, você não consegue fazer outra coisa além disso, e ainda assim se acha no direito de me questionar!? Tenha santa paciência! Não dá pra ficar calado diante de um absurdo desse!.
― Ô seu homem, quem foi que lhe disse que me sinto mal em andar devagar e limitar minha vida a comer e dormir? Eu não tenho culpa se ao inventar o tal progresso teu bando achou que poderia dominar a natureza e agora como consequência se vê obrigado a trabalhar dia e noite feito doido.
― Cuidado! Muito cuidado! Camarada humano… Quem acha que pode com o mundo, às vezes, acaba é com o mundo nas costas. E fique você sabendo que comer e dormir é bom demais! ― voltou a falar a preguiça.
De repente, a coruja abriu o olho direito e disse:
― Cuidado com o que pensa, camarada homem, é no pensamento que está a salvação, ou a perdição da vida…
Achando o momento propício, o papagaio perguntou:
― O que é esse tal progresso que a comadre preguiça acabou de falar?
O humano respondeu:
― É simples e vou dar uns exemplos: Antes vivíamos como vocês, com grandes dificuldades para nos locomover de um lugar para o outro, habitávamos em cavernas, caminhávamos por difíceis trilhas e enfrentávamos muitos obstáculos para conseguirmos alimentos, hoje atravessamos mares e rios mais velozes do que qualquer peixe, voamos mais rápido do que qualquer ave e percorremos as estradas com mais velocidade do que qualquer animal; construímos pontes, navios, aviões, casas para morarmos e para trabalharmos, hidrelétricas para gerar energia e abastecer de água nossos lares. Transformamos as matas e desertos em lugares produtivos. Enfim, graças à capacidade humana de transformar a natureza, tudo isso se tornou possível e, desse modo, podemos viver bem em qualquer lugar do planeta.
A coruja abriu o olho esquerdo e voltou a falar:
― Cuidado com o óbvio, camarada humano, e não esqueça que as águas dos rios não andam numa só direção…
― Gostaria que tivesse citado, mas como não o fez é bom que saiba o que essa busca incessante pelo conforto de vocês tem nos proporcionado ― enquanto seu bando mergulha na busca de seus prazeres faraônicos, conosco acontece justamente o contrário, perdemos nossos abrigos e nossas fontes de alimentos. Por que não respeitam o espaço dos outros? ― falou o lobo guará muito aborrecido.
― Quem foi que disse que temos problema para nos locomover e quem disse que nos sentimos mal com as atribulações que temos? ― perguntou a perdiz que estava a chocar seus ovos naquela gruta.
O humano, surpreso com a presença da perdiz e do lobo guara naquele local, demorou um pouco mais para responder:
― Sei que as aves são exceções no que estou falando porque têm asas, mas os demais, não.
Mas a preguiça sentindo-se menosprezada voltou a falar:
― Eu não me sinto nem um pouco incomodada com o fato de não poder caminhar rápido. De que adianta ter tanta pressa se nunca se sabe o que se vai encontrar no final de cada galho? Para mim, conseguir o alimento de cada dia é uma glória, ao contrário do que pensa, sou muito feliz… E com certeza continuarei assim por toda vida, se seu bando parar de destruir as matas onde vivo.
Mas o humano não podia se deixar-se comparar com uma preguiça, ou qualquer outro animal, então voltou a comentar:
― Você pensa e age assim porque não tem sonhos a realizar, fique sabendo que para os seres humanos existem coisas muito mais importantes que o alimento; o dinheiro, por exemplo é tudo na nossa vida.
A palavra dinheiro deixou todo mundo perdido. Como era possível existir algo no mundo mais importante que o alimento? ― Era a pergunta que permeava o imaginário de todos os animais, exceto do humano.
― O que é o dinheiro para ser mais importante que o alimento?
O humano respondeu como se estivesse conversando com os outros de sua espécie:
― O dinheiro, segundo o Aurélio, é toda espécie de moeda, ― Tudo bem! Sei que pra vocês o conceito não tem importância, mas a função é bem mais fácil de compreender; o dinheiro serve para que o homem viva feliz. É através do dinheiro que o homem tem ou não uma boa qualidade de vida.
― O que é que o dinheiro faz de bom para o homem? ― indagou o tatu-peba.
O humano respondeu mais uma vez:
― O dinheiro não apenas faz, o dinheiro é tudo de bom… É com o dinheiro que o ser humano compra tudo que necessita para viver, quanto mais dinheiro ele tem, mais confortável a vida dele é, entendeu?
― E se ele não tiver dinheiro? ― perguntou o gorila.
― Ele vive à margem do progresso e do conforto, tem muita gente vivendo assim, é o que chamamos de ralé ― respondeu o humano.
― A ralé não vive como gente? ― questionou a preguiça.
― É um animal como você, preguiça ― respondeu o humano com ironia.
― Sem conforto o humano pode viver? ― interrogou a lagartixa.
― Não, não pode, o máximo que conseguirá, será se arrastar como um réptil
― respondeu o humano, novamente com ironia.
― Mas, o humano que tem muito dinheiro e conforto dá dinheiro ao que não tem, para que o outro também tenha comodidade? ― inquiriu o burro ainda com a boca cheia de capim que acabara de apanhar antes de entrar na gruta e ouvir a explicação do humano.
― A pergunta não poderia vir de outro! ― falou o humano com ar de superioridade, e acrescentou:
― Mas é claro que não! Em hipótese alguma! Ou seja, se for alguém muito íntimo e de total confiança, às vezes isso acontece, mas somente como empréstimo.
― O que o humano faz para ganhar dinheiro? ― perguntou a abelha que colhia o néctar de uma flor na entrada da gruta.
― Existem várias maneiras, a melhor é a forma ilícita ― respondeu o humano.
― Com o dinheiro os humanos se ajudam? ― perguntou a formiga.
― Mesmo querendo não é possível, existem poucas pessoas com muito dinheiro e muita gente sem grana no mundo… Se todo mundo que dispõe de capital ajudar a quem não possui, termina não sobrando nada pra ninguém ― respondeu o humano.
― Não entendo nada do mundo de vocês, mas acho injusto uns terem muito dinheiro e não ajudar os outros que não têm. ― comentou novamente a formiga.
― Há coisas na nossa sociedade que nem nós mesmos entendemos, por isso é que vivemos em busca constante do conhecimento ― voltou a comentar o humano.
― Quer dizer que sem dinheiro todos os humanos morrem… Ou tem outro jeito?
― pergunta o veado.
― Antes de responder, o humano fez uma profunda reflexão sobre as relações de poder na sociedade em que vivia. Imagine como se sentiria o patrão diante da impossibilidade de poder exibir seus bens aos subalternos? Como se sentiria o povo do alto-escalão em falar de viagens fantásticas em aviões e navios luxuosos diante de um desempregado? Pensa que prazer sentiria o milionário em exibir sua mansão nas revistas sensacionalistas, se ela não tivesse valor comercial? Como as madames falariam dos seus vestidos exuberantes se não pudessem usar as palavras Dólares ou Euros diante das rivais? Que sentido teria gerar filho se ele nunca pudesse ser superior ao do seu concorrente? O que os governantes diriam diante de um trabalho coletivo que despoluísse o Tietê ou a Bahia da Guanabara, se no final não pudessem desviar nenhum centavo? Que sentido teriam as obras faraônicas sem a possibilidade de desvio de verbas? Que sentido teria a política no mundo sem a corrupção, distorção e terrorismo? Que sentido teria viver sem os males do capital: sem a soberba, a luxúria, a gula, a ira, a inveja, a preguiça e a avareza? Que prazer alguém sentiria em chegar ao sucesso sem ter como relembrar os adversários derrotados, opositores destruídos; sem ter propinas para receber e para pagar pelos inúmeros favores prestados, ou comprados dos opositores? Que prazer sentiria o milionário vaidoso ao saber que depois de sua morte não teria um mausoléu superior capaz de causar inveja?
Enquanto refletia sobre a difícil resposta que deveria emitir, a chuva parou e todos se dispersaram. Vendo cada um saindo a seu modo, falou para as paredes:
― Aí meu chapa! Sem dinheiro todos os humanos morrem, não tem outro jeito…
A coruja foi a única a ouvir a resposta, em seguida abriu os olhos e falou pela última vez:
― Cuidado com conclusões precipitadas, camarada homem, entre o que os olhos veem e o que o coração sente é que os caminhos da vida nascem… morrem… e, às vezes se refazem.