A mulher Com Quem Fiz Amor

Do Livro: Além das Tempestades

“Foi encontrado o corpo de uma mulher idosa flutuando nas águas poluídas de um rio”, anunciou o jornal ao amanhecer.

A face submersa nas águas, os cabelos brancos, a pele coberta de lama, só permitiu a contemplação parcial da silhueta daquele corpo nu.
― É ele! tenho certeza que é ele! Aquele com quem tantas vezes afaguei meu desejo. ― falava o seu Jorge consigo mesmo, sentado na velha cadeira de balanço, lendo o noticiário do jornal do Estado na cobertura do mais exuberante e admirado edifício da cidade.
“Não se sabe qual o motivo da morte, mas as roupas foram encontradas debaixo de uma velha cajazeira, deixando no ar uma leve hipótese de suicídio”. ― concluiu o redator da matéria.
― A velha cajazeira… As velhas mangueiras, as goiabeiras velhas, o sítio velho… As pessoas velhas… Quem poderia imaginar a face amarga da velhice no tempo das frutas doces… Das árvores novas ― murmurou seu Jorge consigo mesmo.
Um corpo flutuando nas águas…
A memória de seu Jorge definitivamente aprisionada no tempo penalizava-se diante das delicias do passado e da amargura do presente… E como na reprise de um filme, oscilava entre instantes de alegrias e dolorosos pesadelos. Num determinado momento ensaiava saltos mortais e acrobacias circenses entre o alto das árvores e as águas, num outro se perguntava apavorado:
― o que houve com o rio da minha infância?
― para onde foram as água claras e doces que afagavam minha sede?
Uma notícia de jornal…
Um corpo flutuando nas águas de um rio poluído…
― Como foram estúpidos e perversos os anseios de meus pais! Impuseram-me de garganta a baixo, um sonho imbecil, ser milionário, num tempo em que o dinheiro era o que menos interessava. Num tempo em que ser criança era a maior de todas as fortunas.
― Eu não quero ser rico, eu odeio ser rico! Meu Deus! Porque roubaram a minha infância? ― Gritou seu Jorge para além das vidraças que o aprisionavam.
Um corpo flutuando nas águas…
Inconformado com sua situação, seu Jorge continuava a exclamar sua grande dor:
― Triste vida a minha! A prisão no apartamento me deixa submerso nos dejetos da televisão, que diariamente enche de porcaria meu cérebro imbecil enquanto tento me livrar da saudade.
― Não posso culpar o repórter por ter sido tão simplista na matéria, não posso culpar a imprensa por não ter dado mais ênfase a este triste episódio e tê-lo resumido a uma minúscula nota de rodapé.
Seu Jorge continua falando consigo mesmo e, não se contendo com seu imenso sofrer, verbaliza para as paredes mais invejadas da cidade, sua angustia com a pobreza da matéria:
― Ah, Se ele soubesse, o que eu sei… Com certeza estamparia não só na manchete principal, mas em todas as páginas do jornal o clamor mais angustiante a habitar o coração de um ser vivo.
― Sei que valorizaria os mínimos detalhes do meu lamento diante do desfecho trágico que culminou no fim da trajetória terrena da melhor da melhor criatura a pisar neste planeta.
― Sei que descreveria nos mínimos detalhes o inestimável prazer que emanava das nossas brincadeiras pelas matas e a paz que sentíamos diante do canto do sabiá.
― Sei que os leitores se deleitariam ao bel-prazer de nossos olhares diante dos ipês floridos; diante da serra com seus enormes pedregulhos e de como nos glorificávamos em seu cume frio e desafiador, donde podíamos ver toda a floresta, o rio, o sítio e o voo das borboletas ao pôr-do-sol.
― Se ele soubesse como eram maravilhosas as águas desse rio, procuraria em livros de poesias parnasianas, ou românticas, frases que pudessem revelar a emoção que sentíamos no desfrute de um mergulho.
Um corpo flutuando nas águas…
E seu Jorge a lamentar o dissabor do momento, continua a apregoar sua grande dor:
― Minha mente está se dilacerando, nada apazigua meu coração… Estou entregue à saudade. Meu ódio, meu repúdio, minha tempestade, tudo agora se exala nesta vidraça que me aprisiona no alto deste imenso prédio.
― Como posso não querer o sepulcro, se estou entre lápides gigantes? ― Se o céu é de uma escuridão apocalíptica e do meu coração o amor foi dissipado?
― Como posso esquecer os clichês que me impuseram pelos lugares por onde andei: “caipira, capiau, tupiniquim, jeca tatu”.
― Como posso esquecer os risos irônicos diante da minha imagem transfigurada nas roupas que usava totalmente fora de consonância com as dos meninos das grandes cidades.
― Não posso esquecer das tantas vezes que fui acuado e violentado como uma caça indefesa, como um inumano nos becos de concretos e vidros das ruas por onde andei, antes de chegar até aqui.
― Tanto esforço pra nada! Tudo em vão! Agora o que me resta é uma extensa coleção de inutilidades e derrotas.
― Tantas vezes me apavorei nas noites em volta à insônias intermináveis e implorei a tudo que conhecia de sagrado naquele recanto divino.
Encerra seu lamento completamente consternado com uma frase de intensa dor:
― Como sofri, mamãe, longe dos teus braços…
Um corpo estendido nas águas de um rio poluído…
Uma notícia de jornal… Um homem numa cadeira luxuosa a lastimar sua grande dor…
― Ah, Como odeio os governantes hipócritas! Como odeio os capitalistas selvagens! – Como odeio a demência que nos remete a sonhos perversos, que nos faz vislumbrar bobagens a ponto de ridicularizar a beleza das matas e das pessoas do mato que plantam, colhem e contemplam de cócoras, nas portas das casas, a chegada de cada novo dia.
― O que devo fazer para fugir dessa gravata sufocante e do desejo de eterno consumo:
― sapato novo, traje novo, carro novo e das etiquetas ridículas que nunca se vê debaixo das vestimentas, mas que definem o glamour das tendências de quem anda na moda.
― Os homens das cidades que propagam o progresso são ridículos… São tão ridículos que amam mais o dinheiro do que seus próprios pais, seus irmãos, suas famílias, sua saúde, e todos as seres vivos do seu planeta. Encontram justificativas para todos os seus males no dinheiro.
― Como são ridículos os homens das cidades que chamam os camponeses de caipiras por desdém e destroem as matas para plantar pastos. Consideram os camponeses ignorantes, primitivos e poluem as águas dos mares e rios por pura ganância.
― Ó Saudade! Como dói não poder voltar a correr por entre as árvores do nosso velho sítio, tomar banho de chuva e fazer amor sob as correntezas. Como dói saber que os beijos mais doces, a pele mais sedosa, mais cheirosa, mais gostosa; a voz mais suave, meiga e erótica; as mãos, boca e olhar que compunham a essência celestial e profana do que houve de melhor em minha existência, agora não passa de um corpo inválido a flutuar sobre as águas que tantas vezes agradecemos a Deus por existirem.
― Como doeu fazer sexo sem inspiração e atingir orgasmos sem prazer. Como doeu abraçar corpos gélidos em transas de estações… Tantas mulheres, tantas noites de luxúrias e carnavais em lençóis de cetim vermelhos.
― Como foi difícil ver meu corpo dilacerando-se entre vinhos, beijos e sexos, sem amor.
Um corpo flutuando nas águas de um rio poluído…
Um homem profundamente ferido a lamentar sua intensa dor…
― Um corpo sujo em estado de putrefação e por acidente cruel do destino, o único com quem fazer amor valeu a pena. ¬― O único com quem consegui, verdadeiramente, transformar o ato sexual em um bem superior… Agora solitário, entregue às intempéries, como uma bolha flutua nas águas sujas pelos lixos das usinas, enquanto meu coração contaminado dilacera-se nas tormentas da dor e da saudade de um tempo em que sexo e prazer compuseram a perfeita fórmula daquilo que chamamos de amor.

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