A borboleta Dissecada

A borboleta dissecada

O DIA DA EXPOSIÇÃO

Do Livro: Flores, Espinhos e Vendavais
O saguão do palácio estava cheio, com as mais ilustres pessoas da pequena cidade espanhola de San Sebastian ali presentes. Era o primeiro dia de exposição do mais condecorado colecionador de borboletas dissecadas do mundo, que fazia mostra inédita do seu trabalho naquele vilarejo, o qual mantinha intactas as características do período medieval.
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A ansiedade tomava conta de todos os que aguardavam, em silêncio, o momento da retirada dos mantos que cobriam as coleções. Após uma hora de espera soou uma música harmoniosa, uma verdadeira sinfonia angelical; mesmo o dia estando claro um grande efeito de luz marcou o início da exposição.

A retirada dos véus de seda também foi um espetáculo à parte, as imensas mantilhas subindo na direção do teto fizeram a platéia vislumbrar-se no incrível mundo das fantasias dos tempos em que tapetes mágicos voavam com príncipes e princesas para castelos encantados.

O DISCURSO DE ABERTURA


Minutos depois, estava pronta a mostra ao público, mas antes que as pessoas se dirigissem aos estandes, o ilustre colecionador pediu que aguardassem um pouco, porque havia algo que precisava falar. O pedido foi aceito, e então começou a discorrer sobre a trajetória que o levou a adquirir peças tão raras. Descreveu com detalhes o episódio que vivera nas montanhas do Líbano à procura de uma espécie de borboleta negra que só existia naquele lugar e que também só era vista durante um período máximo de duas horas por ano e depois desaparecia. Disse que era uma família composta por doze magníficas borboletas que, anualmente, na mesma data, toda a população da cidade se reunia para contemplá-las, e em pouco tempo tornaram-se sagradas para aquele povo que passou a criar inúmeras Histórias sobre aquela espécie.

A HISTÓRIA DA MENINA DO LÍBANO


O colecionador contou que certa vez uma bala perdida atingiu a medula de uma garotinha de aproximadamente dez anos, condenando-a para sempre a viver numa cadeira de rodas. Cinco anos depois, no mês de maio, próximo ao dia da aparição das borboletas, a mãe acordou na madrugada com os gritos da filha, e quando se aproximou ouviu-a dizer-lhe:
Leve-me para as borboletas mamãe, por favor, mamãe me leve para as borboletas!
A mãe que já havia feito de tudo para que a filha voltasse a andar, resolveu atender ao pedido. Afinal havia se passado cinco árduos anos após o acidente, ao longo de todo esse tempo todos os esforços em prol da recuperação da menina havia sido em vão e seu estado de saúde piorava gradativamente.


Com a ajuda de amigos, mãe e filha foram submetidas a uma jornada de dois dias e uma noite até chegarem ao local sagrado, onde permaneceram até o momento da aparição das borboletas que, conforme a hora prevista iniciaram os movimentos para a formação do círculo, uma das primeiras etapas do ritual da sagração. A pedido da mãe, as pessoas puseram a menina deitada no centro da circunferência, depois se afastaram.

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O colecionador contou, com os olhos lacrimejando, que naquele dia aquelas pessoas contemplaram o espetáculo mais lindo que a terra já pôde revelar. Afirmou que unca se viu coreografia tão perfeita, nem mesmo no mágico Balé Bolchoy, e assim nos instantes finais, as borboletas, uma a uma, pousaram na testa da criança, em seguida subiram bem alto na direção do sol e desapareceram na luminosidade. Alguns minutos depois retornaram em forma de águia, pousaram sobre o coração da menina e ali permaneceram até serem envolvidas por uma enorme névoa. Quando a bruma se desfez, os lepidópteros haviam desaparecido, a garotinha estava em pé e nunca mais teve problema para andar.

Comentou que o povo acreditava que eram as mesmas doze borboletas que foram encontradas há mais de cinqüenta anos, por um pastor de ovelhas que um dia se perdeu nas montanhas e só retornou depois de três dias, segundo ele, guiado por elas. Foi ele quem ensinou a trilha que hoje pessoas do mundo inteiro seguem todos os anos, no mês de maio, para visitá-las.
O colecionador finalizou a história dizendo que felizmente, não havia sido possível trazer uma delas. Justificou a impossibilidade de mostrá-las em fotografias ao afirmar que nenhuma câmera seria capaz de reproduzir suas imagens, por serem seres sagrados. Além do mais, disse ele, quem tiver a oportunidade de assistir ao espetáculo jamais a esquecerá. aos demais cabe acreditar, ou não no que lhes contarem sobre elas.
Encerrou o cerimonial com profundos agradecimentos à presença de todos, conforme fizera em todas as suas exposições anteriores.

A VISITA INESPERADA

Mas, antes que as pessoas pudessem se dirigir aos estandes, uma enorme borboleta azul entrou pelo saguão e percorreu todas as caixas da exposição até pousar sobre uma. O colecionador mudou completamente o tom de sua fala, e pesarosamente falou:
Sei que todos vocês estão querendo saber o motivo que trouxe esta borboleta até aqui, e por que, após ter percorrido várias caixas, escolheu a que está pousada. Sei que ficarão mais surpresos se eu lhes disser que esta é a terceira vez que este fato se repete num raio de mais de dez mil quilômetros. 

Gostaria que soubessem que foi justamente através deste pequeno ser que me dei conta do grande mal que fiz, em todo esse tempo, a estes animais. São mais de vinte mil espécies capturadas em mais de trinta anos dedicados a este trabalho. Se eu tivesse a chance de fazer o tempo voltar, colecionar lepidópteros seria algo que jamais faria… 

A solenidade está encerrada pela segunda vez, fiquem à vontade para contemplar minha exposição. Só peço, por favor, que quem se dirigir à que nossa visitante pousou, que vá sozinho para não incomodá-la… Assim vocês poderão comprovar minha grande maldade… E o que me levou a nunca mais querer acrescentar nenhum elemento à minha coleção.

UM AMOR ALÉM DA VIDA

Como havia ocorrido nas duas exposições anteriores, os participantes dirigiram-se um a um apenas à caixa em que a borboleta estava pousada e puderam constatar outra da mesma espécie, ali dissecada. A cena era tão comovente que em questão de horas todas aquelas pessoas foram envolvidas por um enorme pranto. Todas as outras caixas tornaram-se insignificantes diante da dor que envolvia aquele ser invertebrado e, supostamente, sem coração.
Sentindo um enorme pesar, o colecionador doou suas peças àquele palácio, que foi transformado posteriormente no museu das borboletas.

Durante semanas, a borboleta permaneceu ali inerte até fenecer, ser dissecada e exposta ao lado do seu companheiro. Era uma fêmea, comprovaram os especialistas, mas para o povo daquele lugar a descoberta do gênero sexual era o que menos interessava…

1 comentário em “A borboleta Dissecada”

  1. Muito bacana esse conto, vale a pena ler em todas as línguas! Parabéns escritor, você vai brilhar!

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