Cibiléia

Do Livro: Flores, Espinhos e Vendavais
Sete anos de seca castigava o povoado do Vale do Capuçu, um dos mais belos cartões postais do planeta. Mesmo com grande pesar, muitos moradores daquele vilarejo começaram a arrumar suas malas para tentar a sorte em outro lugar. Outros oravam incessantemente à santa padroeira, para que enviasse logo a chuva, pois já não suportavam ver todos os seus bens se perderem sob o sol escaldante.
Certo dia, um grande incêndio pôs em risco a vida de toda a floresta do vale, o povo se desesperou, porque o ar tornou-se irrespirável. No caminho de volta do trabalho, um homem avistou a conflagração na serra e, por alguns instantes contemplou a circunferência das chamas no escuro da noite. Presenciou um espetáculo esteticamente belo na forma como o fogo enfrentava a relva, cercando-a por todos os lados até minarem suas forças, para somente então lançar seu ataque mortal. Mas como nem tudo que é belo é bom, aquele senhor sabia perfeitamente o quanto eram maléficas as conseqüências daquele show.
Ao chegar a casa, pediu que a mulher fritasse a carne de bode que havia comprado para o final de semana, e que fizesse uma farofa bem temperada. A esposa assustou-se, era a primeira vez que via o marido pedir tal coisa àquela hora da noite. Sem questionar, fez conforme lhe pedira. Abismada, viu o esposo ingerir desesperadamente aquela comida, depois guardar numa vasilha o restante que sobrara; em seguida o viu sentar-se, calçar de botas antigas que estavam perdidas na dispensa e vestir-se com roupas velhas que há tempos não usava. Depois de se caricaturar como um mendigo, o homem dirigiu-se para a porta da rua. Ainda sem entender, a mulher perguntou o significado de tal proeza e ele respondeu que iria apagar o fogo. Espantada a esposa perguntou pelas suas companhias, já que o incêndio era imenso. Ele lhe disse que poderia ser qualquer um que amasse a floresta e apreciasse a beleza da serra.
Quando o marido deu o primeiro passo para fora da casa, a esposa pediu que esperasse um pouco e, como num passe de mágica, apareceu em sua frente com um chapéu de couro que guardava há anos, pendurado na parede da sala e que era a lembrança mais viva que possuía do seu pai. Completou o traje com uma calça jeans, uma blusa preta de mangas longas e uma jaqueta de couro. Antes que ele mencionasse alguma palavra, ela foi logo dizendo:
Se o critério para segui-lo é amar a floresta e apreciar a beleza da serra, aqui estou eu para o que der e vier. Assustado e muito feliz pela companhia inesperada, o marido abraçou a esposa e ambos seguiram na direção do incêndio. No caminho convidaram todos que encontraram, mas todos com seus inúmeros afazeres não se dispuseram a se submeterem a tal atividade.
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Na manhã do dia seguinte, o casal retornou exausto e feliz por ter conseguido controlar as chamas que se dirigiam à área de florestas virgens do lado sul, com isso aquela parte da mata pôde continuar sendo o orgulho da população daquele lugar, pela beleza natural, pela imensidão de animais que lá viviam e que produziam diariamente um espetáculo superlativo.
No caminho de volta, as pessoas olhavam o casal com espanto. A combinação de suor e cinzas de mato queimado, resultante do imenso esforço travado durante a noite, tornaram aqueles dois quase irreconhecíveis por seus vizinhos. Quando já se aproximavam de casa foram surpreendidos por um de seus velhos conhecidos, que não conseguindo conter o riso diante daquelas figuras esfarrapadas perguntou:
Eu conheço vocês? ― Em seguida exclamou:
― Que loucura! Por acaso estão vindo da guerra?
A mulher respondeu calmamente:
― Passamos a noite apagando o incêndio.
O vizinho ficou tão perplexo que quase perdeu a voz. Depois de alguns minutos gaguejando repetiu a pergunta:
― Vo-Vo-Vocês pa-passaram a noite apagando o fo-fogo? ― Não me digam que foram vocês quem conseguiram apagar aquelas chamas que se dirigiam às matas virgens?
― Sim, fomos nós respondeu a mulher, e complementou ― daqui a pouco retornaremos para continuar o trabalho, quer vir conosco?
O homem meio abestalhado, pasmo, voltou a comentar:
― Vocês passaram a noite em claro e ainda irão voltar para apagar o fogo? Por acaso estão loucos? Ninguém consegue extinguir um incêndio tão elevado. O fato é tão dramático que nem mesmo o Corpo de Bombeiros, que é treinado para esse tipo de ocasião, arriscou a se meter. Ao ser solicitado por telefone, o comandante afirmou que a situação estava fora de controle e que não possuíam equipamentos adequados para contê-la.
― Vejam bem, se nem mesmo a brigada de incêndios, que é treinada para situações complexas, resolveu enfrentar a parada, seriam vocês ou, qualquer um de nós, pobres leigos, quem iria encarar? Fora de cogitação! Isso é uma missão suicida… Afirmo, com toda certeza, que a sorte de vocês seria muito diferente se essa loucura que acabaram de cometer não tivesse ocorrido à noite… Fico todo arrepiado só em pensar em vocês no meio de toda essa labareda, num sol dos diabos como o que estamos tendo nos últimos meses. É loucura de mais!
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A mulher lançou-lhe um olhar penetrante e tão profundo que quase dilacerou sua alma; depois respondeu com simplicidade, mas com a firmeza de uma rocha:
― Gostaria muito de poder fazer o mesmo… De cruzar meus braços e ver as chamas engolirem a paisagem que meus olhos não se cansam de admirar, mas o homem lá na cruz de braços abertos não me deixa ficar na passividade, achando que a dor dessa floresta também não é minha… E que a brutalidade insólita que provocou este incêndio vencerá. Recuso-me a acreditar que em meio a toda essa população não existirá mais alguém disposto a se sacrificar para que as vidas ali existentes não sejam destruídas. E mesmo que não apareça mais ninguém e o nosso esforço não consiga impedir que o fogo transforme em cinzas o recanto que embeleza nossos olhos e apazigua nossos corações, ainda assim, valerá a pena ter tentado.
Tentando se justificar o homem disse:
― Se eu não tivesse que entregar amanhã meu projeto de pesquisa do mestrado de Educação Ambiental, também iria com vocês. Em seguida, virou-se e seguiu para o seu trabalho. Enquanto isso, o casal entrou em casa para tomar banho, alimentar-se e trocar de roupas. Enquanto pegavam as últimas ferramentas para retornar à luta, foram surpreendidos com a chegada de mais quatro companheiros, era o vizinho com quem acabaram de conversar, sua esposa e seus dois filhos, um menino de treze anos aproximadamente e Cibiléia, a caçula de quase dez anos.
Não havia surpresa tão gratificante e maior alegria para o casal do que ver aquelas pessoas na porta de sua casa. Sentiram grande refrigero, a certeza de que não estavam mais sozinhos era revigorante para o enfrentamento da difícil tarefa que tinham pela frente. Antes de saírem, decidiram que um deles deveria ficar para cuidar do almoço que já estava cozinhando. A tarefa ficou com a menina que, segundo veredicto final, se sairia melhor cuidando de tarefas domésticas do que apagando fogo. A decisão da maioria concretizou o dito popular que define a cozinha como o lugar apropriado para as mulheres. Cibiléia teve que aceitar a tarefa, mesmo sendo contra.

Os dois casais e o menino saíram na direção do incêndio, mais uma vez convidando a todos que encontravam pelo caminho para lhes ajudarem, porém todos tinham seus motivos para não irem. Houve uns que até riram da proposta idiota que acabavam de receber, de modo que não conseguiram mais nenhum integrante; entretanto continuaram com o mesmo propósito.

O sol apareceu impetuoso logo nas primeiras horas de trabalho e inflamou as labaredas, que ajudadas pelo vento, mudavam de direção aleatoriamente e transformavam aquela missão num ato impossível.
Quando já se aproximava do meio-dia, o fogo beirava as nascentes dos rios que banhavam o povoado e era a última localidade a ser ultrapassada antes de sua penetração nas matas virgens pelo lado norte; fortalecido pelo vento e pelo calor do sol, o fogo impôs-se majestosamente diante dos bravos e teimosos lutadores que persistiam numa luta perdida.
Quando a esperança começava a desaparecer… Quando o corpo, já não correspondendo ao comando do cérebro, via suas forças minarem na imensidão do calor… Quando as últimas possibilidades de controlarem o incêndio tornavam-se cada vez mais remotas… Quando desistir tornava-se a única decisão sensata, foram surpreendidos por fortes sons de apitos e gritos. Saíram correndo do meio da fumaça para saber o significado de tamanho alarido. Pasmos, defrontaram-se com uma enorme multidão: gente de todas as idades, cor, raça, credo e tamanho. Nunca tinham visto tanta gente reunida por aquelas bandas, nem mesmo nas festas religiosas, que todos os anos atraíam milhares de pessoas.
Ficaram paralisados por alguns instantes diante da multidão, como quem despertava de um sonho maravilhoso e via na realidade ele acontecer. Estavam diante de um mundo perfeito, marcado pelas surpresas, pelas ilusões e pelas alegrias que inundam as almas daqueles que recebem manifestações divinas, chamadas de milagres.
Nesse instante, compreenderam a verdadeira importância da frase que diz: ‘Não deixe de lutar quando não houver possibilidades de vencer. Resistir às adversidades é um alento ao apelo incessante do homem santo, que mesmo de braços abertos na cruz, continua a semear esperança’.
Ao compreender e aceitar que o universo conspirava a seu favor, o grupo dos cinco guerreiros se abraçou e chorou de joelhos cravados nas pedras agradecendo ao Criador, pois só podia ser um prodígio benevolente, só podia ser uma manifestação sublime, ninguém conseguiria reunir, em tão pouco tempo, tanta gente; ainda mais para apagar um incêndio em pleno meio-dia, num período de seca tão intensa. Mas era real, havia uma multidão ali reunida com suas vasilhas e ferramentas diversas, com mãos calejadas, ou não, mas por vontade própria, mesmo não sabendo exatamente o porquê. Por uns instantes os dois casais pensaram que se tratava de um resgate, ou que algo ruim havia acontecido por aquelas bandas e por isso o povo estava protestando.
Nós, seres humanos, estamos tão acostumados com as angústias e desilusões provindas dos desalentos que não nos tornamos receptivos à beleza e à bondade, logo pensamos que se trata de sonhos, como se nunca merecêssemos uma resposta positiva a nossas aspirações, nem a um cantinho do paraíso. Por isso todo milagre vem sempre seguido de uma resposta a mais… Dessa vez, a resposta a mais saiu do meio da multidão, em forma humana com seu misto de teimosia e inocência… Um ser inteligente, astucioso e puro… Um anjo, Cibiléia. Ela gritava aos prantos por seus pais. O rostinho suado, pezinhos delicados e seu jeitinho sapeca correndo sobre o lajeado, de braços abertos, fez daquele instante algo para ser lembrado por toda a vida. Quem presenciou o ato continua a jurar que foi muito mais bonito que qualquer cena de cinema que já existiu.
O abraço da menina no casal foi seguido de gritos de guerra e muita euforia, a garotinha parecia compreender o que queriam que alguém fizesse para movê-los à ação, e com sua pequena caneca de plástico amarelo, sem asa, segura pela mão direita, se desgarrou do pai e foi até o riacho onde a encheu e saiu correndo na direção das chamas, a emoção contagiou a todos que movidos por um forte impulso vibraram como se estivessem num estádio e o time do coração fizesse o gol da virada no último instante do jogo. Seguiram para o riacho com seus baldes, bacias e vasilhames diversos, encheram-nos e partiram na direção do fogo com ferocidade semelhante a do exército de Stalingrado contra a invasão Nazista.
Com a ajuda do vento e do sol, o adversário se mostrou imponente, até que Cibiléia com sua caneca de plástico amarelo, sem asa, em vez de se posicionar na frente do fogo como todos faziam, correu pela lateral evitando o contato direto com as chamas e o consequente calor expirado por elas; exemplo que foi percebido e seguido por todos, que se dividiram em duas frentes e foram controlando as laterais, não permitindo a expansão das labaredas para outros lados; aos poucos foram cercando e estreitando até transformarem o lume num minúsculo pavio aceso que foi apagado por um simples jato de água. E, assim, num período de um pouco mais de duas horas sucumbia o maior e mais destrutivo dos incêndios que já existiu naquele lugar.
Alguns dias depois do episódio, as pessoas começaram a se dar conta da trama sob a qual foram envolvidas e, passo a passo, foram montando o quebra-cabeça. Cerca de um mês depois compreenderam a genialidade da menina. A professora contou que Cibiléia e o Chiquinho chegaram desesperados no meio da aula dizendo que os pais da primeira criança estavam cercados pelo fogo no alto da serra e se ninguém fosse ajudá-los iriam morrer. Comovidos com a história, todos os meninos se ofereceram para ajudar. A sala de aula, que já não era um mar de tranqüilidade, transformou-se num palco de euforia e lamentações, até que a professora foi conversar com a diretora, que num primeiro momento recusou o pedido. No entanto, quando a professora trouxe a resposta negativa, a sala de aula ficou vazia e a da diretora completamente lotada; todos os alunos da escola foram pedir para salvarem os pais de Cibiléia. Sem ter como repetir a negação, a diretora cedeu; porém impôs uma condição: que todos convidassem seus familiares que estivessem em casa ou nos arredores e que trocassem de roupas, levassem bacias e baldes, ou alguma coisa que pudesse ser útil contra um incêndio.
O Chiquinho, induzido por Cibiléia, contou para a polícia que viu um homem morto na beira do rio. Enquanto isso a menina dava prosseguimento a sua trama conversando com a presidente do grupo de oração da Virgem Maria e disse que havia sonhado que a Virgem Santa iria aparecer naquele dia às dez horas da manhã, às margens do rio, mas ela só ia aparecer se todo mundo da cidade fosse lá para ver, disse também que o povo da outra igreja já estava a caminho e quem a santa avistasse primeiro seria mais abençoado. Contou a mesma história à presidente da outra igreja, só que em vez da Virgem Maria, apareceria Jesus. Ela, mesmo pequenina, já sabia que os protestantes não concebiam Nossa Senhora como uma divindade, por isso contou como se fosse um segredo de mais absoluto sigilo, revelado a um coração puro, que o povo da outra igreja já estava se preparando para receber as bênçãos primeiro. Mas era necessário que todos levassem baldes, banheiras e demais vasilhas que tivessem em casa e pudessem transportar água para serem abençoadas, e assim o povoado viveu seu maior instante de agito; os que não foram convidados estavam ali por curiosidade ao ver todo mundo seguindo na mesma direção.
A trama foi tão bem elaborada que nem mesmo a polícia escapou, o comandante, que por um momento chegou a duvidar da história do Chiquinho, logo se convenceu ao ver tanta gente se dirigindo ao mesmo local. As freiras não tiveram dúvidas, os padres e os pastores também não. Sabiam que algo fascinante estava acontecendo naquele lugar e que todos precisavam estar lá pra ver. Assim, em pouco mais de duas horas, toda a população estava reunida diante do mais terrível dos incêndios, esperando que alguém lhes dissesse o que fazer e isso Cibiléia fez com maestria ao pegar sua caneca de plástico amarelo, sem asa, enchê-la de água e correr na direção do fogo.
A partir daquele dia, muitas histórias foram criadas sobre este episódio. Cibiléia tornou-se a referência para todos aqueles que se achavam descrentes e firmeza para os felizes, ainda mais depois que uma doença misteriosa levou-a, ainda criança, desta para outra vida e seu corpo foi sepultado no alto da serra sob um enorme cruzeiro que hoje é visto de qualquer ponto do vale.
Depois que Cibiléia foi sepultada na serra, nenhum fogo conseguiu se aproximar do povoado, muitas chuvas repentinas têm surgido em pleno verão e a mata nunca mais sofreu com as estiagens, os cristãos nunca mais disputaram as graças do Salvador e a vida pôde seguir seu curso livremente, naquele ambiente paradisíaco, sob a proteção incessante da amável guardiã.

1 comentário em “Cibiléia”

  1. Que estória mais fantástica gente! Pessoal vamos todos ler e lendo, seremos mais felizes. Saudações a todos os leitores brasileir@s!

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